Por Antônio Claret*
Val viera do Assurini, atravessara a balsa e chegara a
Altamira para expor sua situação e de seu povo, atingido por Belo Monte. Já
fizera o mesmo trajeto algumas dezenas de vezes apenas neste ano. Assurini
passa por um momento crucial, pois vê a barragem seguir atropelando tudo sem
uma resposta minimamente razoável por parte da Norte Energia.
Às nove horas e quarenta minutos chegara ao INCRA com a
intenção somente de remarcar reunião para a Agrovila Sol Nascente, no Centro de
Formação Irmã Dorothy. No dia primeiro de setembro estivera ali, e agendara a
reunião para cinco de outubro, mas o Executor do Órgão simplesmente se
esquecera. Como essa gente é esquecida!
Val apresentara-se à recepcionista, que já o conhecia.
Lembrava bem o seu rosto de camponês indignado, e a sua questão. Mesmo assim
ele falara tudo de novo. Ela anotou ‘tudinho’, e disse que o Executor estava
atendendo outra pessoa: ‘é só aguardar’, disse-lhe, indicando a cadeira.
Val sentara-se um pouco, exausto que estava. Saíra de casa de
madrugada, andara 12 km a pé, pegara um Pau de arara, suportara os solavancos
por mais 28 km. Não é fácil!
Pressentindo que aquilo iria demorar, ensaiara entrar e subir
até a Casa de Governo, que funciona no andar de cima. Mas fora logo barrado
pelo Guarda. A atendente o chamou, pegou-lhe o nome, depois o liberou para subir
as escadas.
Não havia ninguém na Casa de Governo, embora fosse horário de
trabalho, dez horas. A copeira, que, por acaso, estava ali, na sala de
atendimento, disse-lhe, amavelmente: ‘eles ainda não chegaram!’. E
justificou-se: ‘certamente encontraram alguma coisa para resolver pelo
caminho’.
Val ficara imaginando que a Casa de Governo em Altamira –
único município brasileiro que tem esse tipo de serviço, um órgão exótico e
precário - é como um Corpo de Bombeiros, que serve para apagar fogo, mas sem
extintor.
Descendo de novo as escadas, Val procurara ao menos um
cafezinho, que lhe restaurasse as forças, mas não encontrara. Havia uma garrafa
no galpão, com copos de plástico, mas vazia. Então tomara água, e sentara-se de
novo na cadeira.
Dali ficara reparando ao redor. Uma mulher idosa, mas jovial,
falava ao telefone. Como conversasse alto, ele ia ouvindo a fala dela. Contava
para alguém, do outro lado, da Belo Sun, mineradora canadense em processo de
instalação na Volta Grande do Xingu, região onde o rio terá 100 km secos por
causa de Belo Monte. Parecia satisfeita. Dizia que os homens eram bonzinhos,
davam carona, carregavam as compras dos ribeirinhos numa distância de 10 km,
visitavam as casas, tomavam café. Val ouvira tudo aquilo como um filme antigo
que lhe retornasse à cabeça.
Outra mulher, que chegara apressada, queria resolver uma
questão do seu lote. Foi-lhe dito, porém, que precisava de um Requerimento de
seu pai. Ela fez o que podia, disse que isso era impossível, que seu pai mora
distante, no interior, mas a atendente simplesmente afirmou: ‘não podemos fazer
nada!’. A Mulher se foi!
Um senhor alto e claro, com capacete no braço, entrou e foi
direto à recepcionista, cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Nesse exato
momento, alguém do INCRA bateu-lhe nas costas, com ares de intimidade: ‘em que
lhe posso ajudar?’. Depois, virando-se para a recepcionista, olhando-a no
rosto, disse, num misto de exclamação e pergunta: ‘aqui em baixo, ele pode
entrar de bermuda, não é mesmo!? A atendente apenas confirmou com a cabeça.
Parecia que aquilo já era uma coisa costumeira. Ele entrou, e os dois ficaram
um tempão conversando numa mesa, lá no canto do salão.
Val permanecera no INCRA de nove e quarenta até onze e quarenta,
mas saíra satisfeito, pois, ao menos, conseguira, em duas horas, remarcar a
reunião, que, agora, ficou agendada para o dia vinte e cinco de outubro. É
torcer para o Executor não esquecer-se
de novo!
Val resolvera subir outra vez à Casa de Governo e, agora,
tivera sorte. A coordenadora estava. Ela
o atendeu, entrecortando a conversa, resolvendo, por telefone, um fechamento da
Transamazônica em Pacajá, motivado por um atentado contra uma lutadora local.
Uma caminhoneta estranha lhe atingira a moto, e a jogara longe. Por sorte a
mulher não perdera a vida, mas ficara muito machucada.
Na Casa de Governo, Val descobrira um dado que o deixara
surpreso, e ainda mais indignado. O PA (Projeto de Assentamento) Assurini - um
dos assentamentos da grande área do Assurini, com trinta mil pessoas - tem
quatrocentas e cinquenta e nove famílias e, ‘tecnicamente’, caberiam apenas
trezentas.
Val questionara! ‘O INCRA errou’, disse o funcionário, na
maior calma. ‘Mas fazer o quê? Cento e cinquenta e nove famílias vão ter que
sair!’.
Val saíra com a cabeça quente, e meio confusa. A Norte
Energia quer expulsar os camponeses da terra para encher o lago de Belo Monte.
Agora, também o INCRA quer arrancar, da mesma localidade, cento e quarenta e
nove famílias.
A manhã terminou! Val fora à casa do seu cunhado para almoçar
e voltar à tarde para continuar sua via crucis.
Sua próxima estação, às 14 horas, foi o IBAMA. O sol estava
muito quente. Ele olhara para o Xingu, ali do lado, e tivera vontade de deixar
tudo e cair naquelas águas. Um Guarda, da sombra, lhe perguntou o que desejava,
e lhe indicou a porta de entrada. ‘Fique à vontade’, disse-lhe.
Ele entrara, sentara-se, depois notara uma menina lá no
canto, num local cercado de vidro com um pequeno orifício, e fora procurá-la. A
menina, que era a secretária, o atendeu maravilhosamente bem. Ouviu-o com
atenção.
A principal informação que Val buscava ali era sobre o
Caderno de Preços da Norte Energia. Sempre muito educada, a menina lhe explicou
que a Superintendente do IBAMA está há três meses para Brasília. Estaria
fazendo cursos e encontros. E disse que todas as questões referentes a Belo
Monte se revolvem lá. ‘Aqui não temos nem o Caderno de Preços’. Abrindo um
sorriso, lhe prometeu: ‘ela chega no dia nove de novembro, com certeza vai
trazer muitas informações para vocês, inclusive vamos solicitar à Norte Energia
o Caderno de Preços. Quem sabe eles nos arranjam um!?’.
Val saíra boquiaberto; rira daquela situação cômica e, ao
mesmo tempo, dramática. Belo Monte vai a pleno vapor! Mas ninguém viu, ninguém
ouviu, ninguém sabe de nada. Nem o IBAMA, em tese o órgão que dá as licenças.
Despedira-se, e saíra rumo à Prefeitura. Lá ele desejava
averiguar resposta de ofício protocolado no dia três de setembro reivindicando
informações sobre processo de concessão de operação da balsa do Assuniri (os
camponeses pagam uma espécie de pedágio para ir à sede do próprio município;
uma moto, por exemplo, são sete reais) e projeto de asfaltamento da
Transassurini.
Fora antes ao setor de protocolo. A secretária procurou,
procurou, até encontrar o número do ofício, e o assunto. E pediu-lhe que se
dirigisse ao gabinete do Prefeito: ‘lá você terá a resposta!’, disse.
Ele chegara lá, meio tímido, com aquele pedaço de papel na
mão, escrito à caneta, e mostrara à senhora que se achava atrás do balcão.
Falara que desejava obter a resposta da Prefeitura sobre aquele documento.
A senhora, ranzinza, parecia não ouvir direito. Atendeu-o
mal. Depois lhe disse apenas que era hora de almoço. Val olhara no relógio.
Eram quatorze horas e trinta minutos. A dona continuou falando: ‘a secretária
vai chegar às 16 horas’.
Val saíra dali coçando a cabeça, enquanto decidia o que
fazer, e resolvera ir embora. Não dava tempo de esperar. Precisava tomar ônibus
para Vitória do Xingu às dezesseis e trinta, onde iria visitar acampamento de
1000 famílias. Com Belo Monte, a questão da moradia está explodindo por todo
canto.
No dia 18 à tarde, Val soubera da ocupação do escritório da Norte Energia,
no bairro Jatobá. Eliosvaldo lhe contara tudo. Famílias organizadas no MAB
chegaram, entraram, e dialogaram de cabeça erguida.
A pressão foi grande! Do lado da empresa, seguranças privados
e policiais: Força Nacional, militares; do lado dos atingidos, o poder rebelde
de um povo indignado. A prepotência da Norte Energia foi cedendo, ficando
indicativo de três reuniões para ouvir a pauta dos trabalhadores.
A Via-sacra termina na ressurreição! Val é uma pessoa de fé!
E sente que a Via-sacra à moda Belo Monte poderá terminar antes, com a força da
insurreição popular. Pois tudo que se espreme demais, e não tem autoridade que
‘resolva’, sai entre os dedos. Ele se alegra com isso!
*Padre missionário na Prelazia do Xingu
e militante do
MAB.